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Vi pela primeira vez o documentário As Operações SAAL, de João Dias, no São Jorge, numa quente noite de Junho de 2007. Lembro-me que no fim exprimi a algumas pessoas a minha profunda indignação por aquilo que na altura li como sendo uma exposição pública inadmissível da apresentação, talvez ingénua, mas absolutamente verdadeira, que um dos entrevistados fez, frente à câmara, da sua casa. A origem da minha indignação estava no profundo mal-estar que me provocaram as garga-lhadas que uma parte da plateia soltou aquando da referida apresentação. O meu argumento virava-se, antes de mais, contra o cineasta, que, dizia eu, ao montar o filme não tinha cumprido um princípio ético fundamental: interrogar-se acerca dos efeitos, sobre as pessoas filmadas, que possam resultar da publicitação das imagens. “Não se pode expor assim a alma de uma pessoa à chacota do público”. Foi por causa dessa minha posição, na altura tão emotiva, que Manuel Graça Dias me convidou a fazer este comentário. Quando revi o filme, sozinha e em casa, voltei a emocionar-me com a mesma cena, mas desta vez porque a achei comovente. Sem dúvida a mais comovente de todo o documentário. E foi se calhar por isso que João Dias a incluiu na montagem. Agora penso que não tinha meios para antever o comportamento do público. 

A sequência de imagens a que me refiro mostra um habitante do bairro de S. Vítor, no Porto, satisfeito e orgulhoso com a sua casa, da autoria de Álvaro Siza Vieira. Atravessados 30 anos de história, a sua satisfação é fundada em factos concretos: envolveu-se com entusiasmo num processo que lhe permitiu ter uma casa de que gosta e que, ainda por cima, é hoje reconhecida como sendo boa arquitectura. Dito de forma mais académica, o morador em questão tem consciência de que a posse daquela casa lhe confere um capital cultural adicional que, noutras circunstâncias históricas, teria sido impossível obter por alguém com a sua origem social. Graças ao SAAL, ele pode viver numa casa de Álvaro Siza Vieira. Visivelmente orgulhoso, diz que, com excepção de pequenas coisas, tais como os revestimentos, os materiais das caixilharias, a segurança das escadas (melhorias funcionais e de conforto, com efeito), manteve, respeitosamente, o desenho (“a traça”) do arquitecto. E no que diz respeito à arquitectura, uma casa é essencialmente isso: “a traça”. O espaço em que o corpo se move e vive. 

Mas afinal do que riram as pessoas? Riram da verdade de um homem que não possui a sofisticação cultural que eles pretendem ter. Riem porque as suas cabeças estão mais preocupadas com decoração de interiores do que com questões de habitação (e uso aqui o termo no seu sentido mais nobre). Na realidade não parecem ter percebido aquilo que foi o SAAL: um encontro, curto e único na história portuguesa, entre arquitectos, políticos e habitantes. Um encontro que, como quase todos os encontros, foi também feito de desencontros. O testemunho referido configura, para mim, o momento do filme em que se condensam, em parte por causa do poder das emoções, uma parte das questões que fizeram do SAAL um momento único da história social e cultural portuguesa. 

Em pleno período revolucionário, numa sociedade onde ainda não existia classe média e onde por isso a distância entre as elites e o resto da população configurava uma situação quase pré-moderna, as circunstâncias políticas e sociais juntaram, numa mesma arena, arquitectos e populações com vista à resolução de um problema que se prende com uma das áreas mais básicas, universais e ao mesmo tempo diversificadas da cultura material das sociedades: a construção de habitação. Neste caso, condigna para todos. Esse encontro excepcional fez-se, como muito bem mostra o documentário, a partir de moldes muito diversos, organizando-se em função das especificidades locais do País. Em alguns casos – e apesar do investimento na invenção de metodologias de comunicação –, o abismo entre os universos culturais dos moradores e os daqueles que projectaram as casas parece ter sido maior. Mas quis a história – e obviamente a qualidade da arquitectura – que fossem exactamente esses os arquitectos cujo trabalho recolheu maior reconhecimento nacional e internacional. Um reconhecimento tão grande que fez com que, depois de 30 anos a manter e a alindar as suas casas, os habitantes ainda tivessem a felicidade de, orgulhosos, as mostrar ao mundo. 

A sociedade portuguesa mudou o suficiente para que uma nova classe média se possa hoje começar a estruturar: diversa nas suas origens, mas indiscutivelmente resultante, na maioria dos seus representantes, de mobilidades sociais ascendentes. A aproximação dessa classe média aos estilos de vida do que era então uma pequena elite intelectual com algum treino de vida cosmopolita, tem-se vindo a fazer à medida que os capitais escolares e a informação mais global se difundem. Desse movimento, extremamente agressivo na marcação das valorizações simbólicas que permitem fazer, no seu interior, diferenciações hierárquicas, resultam configurações culturais e identitárias que congregam fragmentos de muitas origens. Essas configurações transcrevem-se, invariavelmente, na cultura material. A presença, rara na classe média portuguesa, de capitais culturais com profundidade temporal – que se traduz pela posse, desde há várias gerações, de objectos culturalmente valorizados – é um dos elementos que integram esse processo de hierarquização.

No contexto social descrito, o interior das casas surge talvez como o lugar onde mais rapidamente se podem ler, a partir das suas materializações, as clivagens e as diferenciações. O espaço íntimo revela algumas das subtilezas que o espaço público, mais superficial no escrutínio e, nesse sentido, mais democrático, pode apagar. E foi exactamente porque essa intimidade foi exposta – revelando o quanto é complexa a construção da identidade de um homem cuja vida foi atravessada pelo projecto SAAL – que a plateia do São Jorge se pôde rir. A “revolução” terminou, mas a luta pelo poder simbólico continua, como demonstraram as gargalhadas nervosas, a tentar organizar, de forma feroz e por vezes impiedosa, a frágil e recente classe média portuguesa. |

 


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